Medidas protetivas dadas a mulheres vítimas de violência raramente chegam aos filhos

Para receber a visita da filha, David Souza Miranda ligou insistentemente para a ex-mulher. Nayla Maria de Albuquerque, de 24 anos, havia pedido divórcio após denunciá-lo por violência doméstica. Ela obteve uma medida protetiva, que não se estendeu a Luisa Fernanda da Silva Miranda, de 5 anos. Em 22 de setembro, David comprou guloseimas e ficou à espera da filha em sua casa, na Favela da Coreia, em Senador Camará. Ao encontro, também foram a tia de Luisa, Natasha Albuquerque, de 30, e sua filha, Ana Beatriz, de 4.

Às 22h10, elas chegaram à casa de David. O homem pegou uma marreta e atacou as três com golpes na cabeça. Espalhou gasolina pelo local, trancou a porta e ateou fogo. As vítimas foram levadas em estado gravíssimo a hospitais, onde morreram. O homem foi preso em flagrante.

Durante os nove anos ao lado de David, Nayla havia sido vítima de estupro, agressão física e verbal, ameaça de morte e privações. Luisa Fernanda também apanhava constantemente do pai, que já a deixara com a perna roxa. Após denúncia à polícia, a mulher recebeu a visita de agentes do 40º BPM (Campo Grande), que alertaram num relatório sobre os riscos “que a menor corre ao ficar na companhia do pai sem supervisão”, e pediram ainda que a medida protetiva fosse estendida à filha.

Obstáculo de outra lei

As medidas protetivas para crianças e adolescentes são garantidas pela Lei Henry Borel, de maio de 2022. A norma se aplica às violações em contexto doméstico e familiar, quando filhos são agredidos pelos pais, por exemplo. Contudo, o acesso a esse direito encontra barreiras jurídicas para a concessão, como a Lei de Alienação Parental, de 2010.

Segundo o Tribunal de Justiça do Rio, nos últimos 18 meses, 1.300 crianças e adolescentes tiveram acesso às protetivas. Em comparação, no mesmo período, as mulheres, pela Lei Maria da Penha, receberam quase 72 mil. A relação entre ambas é de cerca de 2%.

Helen Castilho, advogada de Nayla, explica que a decisão da Justiça não considerou o risco do convívio entre Luisa Fernanda e o pai. No processo de violência doméstica, Nayla narra que a filha não podia sequer se alimentar na frente de David, pois vomitava de medo:

— Quando Nayla foi à delegacia, informaram que a medida protetiva cabia apenas a ela e que “os direitos do pai iriam continuar”. Em todo momento ela dizia que temia pela vida da menina, que ele também praticava violência contra ela.

Questionado sobre a decisão, o TJRJ afirmou que “os processos envolvendo violência doméstica tramitam em segredo de justiça. E que a lei da magistratura (Loman) impede o juiz de se manifestar fora dos autos”.

Para Flávia Nascimento, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria do Rio, o caso de Nayla mostra como o não deferimento da medida protetiva para a criança a deixa em vulnerabilidade:

— É muito importante que, num primeiro momento, as medidas protetivas concedidas para mulheres em situação de violência sejam estendidas às crianças, para que depois se verifique a possibilidade de uma reaproximação.

De opinião semelhante, Michele Monsores, advogada de família, destaca um problema para concessão de medidas protetivas a crianças, a competência da vara onde costumam ser julgadas:

— As queixas sobre maus-tratos e abusos, na maioria das vezes, são levadas às varas de família, que decidem sobre guarda e convivência. Falar de medida protetiva nesse âmbito é complicado porque o Judiciário, ao defender o melhor interesse da criança e do adolescente, foca no convívio familiar. A competência deveria ser o juízo criminal, ouvindo as crianças e os adolescentes vítimas.

Muitas medidas protetivas para crianças e adolescentes são negadas com base na Lei de Alienação Parental, criada para garantir o convívio de filhos com pais separados, além de evitar a manipulação das crianças contra um dos pais. Contudo, como explicam especialistas, a norma pode violar a proteção infantil ao obrigar a convivência com parentes agressivos e abusadores.

— Essa lei é usada para manter os ex-maridos próximos às mulheres. Elas não conseguem se distanciar totalmente dos agressores devido à obrigação da convivência familiar — diz Michelle.

A juíza Luciana Fiala de Siqueira Carvalho, do 5º Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, da capital, defende a união de varas de família com as de violência doméstica.

— Seria interessante transformar parte das varas de família em varas de violência doméstica, integrando as equipes técnicas. Assim, os profissionais conseguiriam analisar os casos a partir de um olhar tanto para o convívio quanto para as violências, entendendo melhor os casos em que a alienação parental realmente existe — explica. — É difícil acreditar que um homem que bate na mulher será um bom pai. Ele dá exemplos de violência aos filhos. Com a mescla das varas, ficaria mais fácil garantir proteção às crianças.

Testemunhas de violência

O divórcio em dezembro de 2022 interrompeu 13 anos de violência. Susana (nome fictício) não podia trabalhar, ver o pai ou ter uma vida pessoal sem a supervisão do ex-marido: só ia à academia com o GPS do celular ligado. Tanto na rua quanto em casa, era alvo de xingamentos, humilhações e agressões. Os dois filhos, hoje com 6 e 11 anos, eram as principais testemunhas, apesar de nunca terem sido agredidos.

Aos 4 anos, o mais velho começou a reagir. Entrava na frente da mãe durante as brigas. Com mais idade, passou a ameaçar o pai com cabo de vassoura, a correr aos vizinhos em busca de ajuda. A caçula chorava assustada.

As mensagens telefônicas, gravações de áudio, fotos e vídeos da violência fizeram Susana conseguir medida protetiva em dezembro de 2022. Na época, ela tentou estender o direito aos filhos, mas a juíza recusou o pedido, reforçando que o homem não apresentava risco às crianças. Na decisão, ficou definido que o pai poderia vê-las na presença de outros parentes e em local público. Quase cinco meses depois, em maio deste ano, a protetiva de Susana foi desfeita pela ausência de “novos fatos”:

— Eu vivo com medo, por mim e pelos meus filhos. O pai deles não é uma pessoa confiável. Quando eu conseguia trabalho, ele aparecia para me agredir, me acusava de traí-lo. Fui demitida diversas vezes por isso. A juíza não ouviu meus filhos; eles não participaram de nada e ainda são obrigados a conviver com o pai. Seria importante ouvi-los, analisá-los como vítimas também.

Edilaine de Sousa Pereira, vice-presidente da Comissão de Direito de Família da OAB de Duque de Caxias, explica que as crianças que testemunham agressões também precisam de proteção, mas pondera que cada caso precisa ser analisado com cautela:

— As medidas protetivas para crianças devem ser dadas respeitando a individualidade dos casos, considerando o risco de vida dessas vítimas. Algumas situações são mais alarmantes, como as de lesão corporal, violência sexual, mas aquelas que testemunham violências também precisam de proteção. Existe um tabu sobre pais e mães serem violentos, mas acontece. A Justiça precisa ser mais ágil na análise desses casos, precisa prever o risco para evitar fatalidades.

Guarda compartilhada

Durante uma audiência para definir a guarda de seus dois filhos, Patrícia (nome fictício) dirigiu à juíza uma pergunta: “Se ele matar meus filhos, eu recorro a quem?”. Ela viveu 14 anos em uma rotina de abusos psicológicos até decidir se separar e sair de casa. Os filhos passaram a ser as principais vítimas. Nos dias de visita, Patrícia fica “em pânico”.

— Sempre que os meninos iam, ele controlava o telefone e não deixava que conversassem comigo. Um dia, o mais novo me pediu para buscá-lo porque estava passando mal e o pai surtou. Eu só ouvi os meninos gritando e, depois, ele desligou o telefone — lembra.

Agora, Patrícia se sente mais segura, já que os filhos estão mais velhos e ficam com o pai apenas um pernoite a cada 15 dias.

— Em um lar violento, os filhos sofrem junto, e a mulher é duas vezes atingida. Ela precisa pensar na segurança dela e deles porque é obrigada a entregar os filhos nas mãos dos seus agressores — finaliza.

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