João Emanuel Carneiro promete ousadia em ‘Mania de você’, diz que novela é ‘teste violento’ para autor e fala sobre tramas LGBT: ‘Walcyr fez mais pela causa que eu’

Quando consegue captar o espírito da época, o tal zeitgeist, um autor de novelas dá um passo significativo rumo ao êxito de sua obra. No caso de João Emanuel Carneiro, a expressão máxima disso foi “Avenida Brasil” (2012), que espelhava a ascensão da classe C. A combinação do fator subjetivo com o texto, a direção e o elenco brilhantes conduziu a produção à galeria das maiores da teledramaturgia brasileira. Agora, com “Mania de você”, próxima trama das 21h da Globo, ele, claro, almeja acertar novamente este alvo. Desta vez apostando nas relações intensas entre quatro jovens, Luma (Agatha Moreira), Viola (Gabz), Mavi (Chay Suede) e Rudá (Nicolas Prattes).

— Esta novela trata de obsessões amorosas. Colorida, passada num resort, sobre amor e poder. Talvez capte este espírito do tempo, das pessoas inquietas no amor. Me interessa muito contar a história do jovem. A vida dele pode virar qualquer coisa. É uma página em branco ainda. E eu estou numa fase bem jovem — explica o autor, de 54 anos.

Na história, prevista para setembro, Luma é uma chef de cozinha bem-sucedida que tem um relacionamento com Rudá. Ela conhece Viola, namorada de Mavi, e ajuda a moça a aprender seu ofício. A amizade acaba virando rivalidade, e os casais se embaralham. A trama reunirá ingredientes que o público adora saborear: vinganças, traições e mortes. Apesar de os elementos serem velhos conhecidos, o autor arriscará uma receita diferente.

— É uma história bem ousada. São personagens interessantes, ao mesmo tempo contraditórios e multifacetados. O vilão Mavi faz coisas atrozes, mas é um amor. Tem várias coisas provocativas para o telespectador. Por exemplo, os vilões Luma e Mavi são traídos pelos mocinhos. Geralmente é o contrário — explica ele, que também recorrerá ao recurso do “quem matou?”, com o vilão Molina (Rodrigo Lombardi) como vítima: — Será de outra forma, não se estenderá até o final.

Molina e a funcionária que maltrata, Mércia (Adriana Esteves), são os pais de Mavi. O personagem estava reservado a Murilo Benício, mas o ator não chegou a um acordo com a emissora. A intenção era inverter o jogo Carminha x Tufão, de “Avenida Brasil”.

— Mércia vai ser o contrário da Carminha. É submissa e maluca, autodestrutiva. Acho que funciona do mesmo jeito sem o Murilo. Escrevi pensando nele, mas as mudanças de elenco acontecem, ainda mais hoje, com questões de contratos.

Além de Adriana Esteves, Carneiro fez questão de ter no elenco Thalita Carauta, com quem trabalhou em “Todas as flores”, do Globoplay, e em “Segundo Sol”:

— Eu pedi. Ela é única. Faz drama e humor, e nenhum fica prejudicado. Vai ser a Leidi, uma demônia engraçada, que chantageia a chantagista Ísis (Mariana Ximenes, que engana a sogra, Berta, papel de Eliane Giardini).

Outro núcleo da novela é o de Mariana Santos, cuja personagem vive uma relação abusiva com o marido. Existe a possibilidade de ela se envolver com uma vizinha, Diana (Vanessa Bueno). Carneiro está “pensando ainda”. Seria o único par homoafetivo. Casado com o ator Carmo Dalla Vecchia, o autor gostaria de ter criado mais enredos LGBTQIAP+:

— Walcyr (Carrasco) fez mais pela causa. Fiz pouco. Não sei (o motivo)… Talvez pudor, censura interna. Está em tempo de eu fazer mais para corrigir esse erro. O Brasil é um país muito conservador. Você invade a casa das pessoas com a novela. Não é uma coisa que elas põem no streaming, que escolhem assistir. Elas estão assistindo. Você precisa ter um filtro grande.

Ele, aliás, avalia como positiva sua estreia no streaming.

— Faria outra novela, sim. Porque é menor. E a pressão é muito menor. A pressão da TV aberta é viciante por um lado. A aposta do pôquer. “Todas as flores” foi uma obra semiaberta. Me agrada que a obra aberta da TV fique cada vez mais fechada. A ideia de que, após o lançamento, a empresa vai intervir para tornar a história mais bem-sucedida nunca deu certo. Há novelas com muitos personagens, e o autor vai vendo no ar o que deu certo. A minha é mais concentrada. Se deu errado, deu errado. Se deu certo, deu certo. Não tem mil apostas — analisa ele, discordando das reclamações do público sobre os rumos da segunda parte da trama: — Acho melhor que a primeira, mais vertiginosa. É difícil para quem escreve ver de fora e julgar, mas acho que evoluiu bem.

Carneiro costuma criticar a duração das novelas. Escrever para o horário nobre, opina, “não é para qualquer um”.

— Um inferno — resume, usando a expressão predileta de suas adoráveis vilãs. — Tem dia que você acha que vai dar certo, tem dia que acorda em crise. É um julgamento diário por seis meses. Pouca gente consegue sair inteira. É um teste violento.

Em sua oitava novela como autor titular na emissora, Carneiro foi entendendo como lidar com a avalanche de comentários ao longo de cada trabalho:

— Você aprende muito a apanhar, né? Todos os dias. E você pode ver dez críticas positivas, mas, quando tem uma negativa, só se lembra da negativa. Quando surge uma crítica ruim, tem sempre alguém para ligar e dizer: “Que injustiça aquilo. Você viu?”.

Muitos anos antes de as redes sociais amplificarem a voz dos telespectadores, já existiam os tradicionais grupos de discussão promovidos pela Globo por volta do capítulo 30 de suas produções. Em vários casos, a partir das conclusões da pesquisa, foram operadas mudanças expressivas nas histórias, com o objetivo de incrementar a audiência. O autor diz que considera o estudo, mas com ressalvas:

— Eu acho que tem que usar, mas não levar ao pé da letra. Tem que entender as demandas das mulheres que estão nesses encontros. Elas vão sempre dizer: “Não gosto de violência, não gosto de tristeza, o casal tem que ser feliz”. Se você faz o casal feliz no capítulo 20, acabou a novela. Todas dizem a mesma coisa. Eu fui muito contra novelas bíblicas no passado, na Record. Fui a um grupo de discussão, na época de “Os Dez Mandamentos”, acho, e falaram: “A gente tem que assistir lá, porque contam a história dos nossos avós, que vieram com Pedro Álvares Cabral e Moisés”. Nunca esqueço essa frase.

Para ele, a urgência por resultados afeta, em alguma medida, a originalidade das produções:

— Acho que o plot de “A favorita”, por exemplo, dificilmente alguém teria coragem de fazer hoje em dia. Por 80 capítulos, não saber quem está dizendo a verdade, se a vilã ou a heroína, é tão radical. Dificilmente alguma TV do mundo faria. Elas ficaram mais preocupadas com pesquisa e resultados desde o começo. Assim, arriscam menos, são menos ousadas nesse sentido.

Além de todas essas pressões externas, o autor tem as próprias cobranças. Carneiro tentar evitar que elas atrapalhem seu processo:

— Não faço encomendas internas. Quero fazer o que sei fazer de melhor. De repente dá certo. Ou não. Novela é uma coisa tão longa… Quando você está fazendo tem que achar que a melhor história do mundo é a sua, mesmo que não seja. Tem que acreditar naquilo ali, já que vai precisar viver naquele mundo tanto tempo.

Após “Mania de você”, estreará o remake de “Vale tudo”. O autor não descarta um dia fazer a nova versão de uma obra consagrada:

— Acho interessante. Mas de uma novela minha mesmo. Dos outros, não. Já pensei muito nisso. “Da cor do pecado”, “Cobras & lagartos”, “A favorita”, “Avenida Brasil”… Daria para fazer um spin-off também.

Estreante na TV Globo em 2000, como colaborador da minissérie “A muralha”, ele conta que gostaria de voltar a escrever séries:

— Várias ideias, mas, com as novelas, não tenho tempo para nada.

Mesmo com as poucas brechas, o autor procura acompanhar o desempenho dos colegas:

— Vejo as histórias de todos os horários quando dá. Você aprende a fazer novela vendo novela dar errado.

Carneiro pretende encontrar um outro espaço no seu dia para as redes sociais. É o único autor do horário das 21h atualmente sem um perfil na internet. Ele já avisou em entrevistas nos últimos anos que abriria uma conta. Será que finalmente acontecerá?

— Não tenho muita paciência e sou bastante discreto. Na metade da novela eu entro — promete.

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