Formada no Rio de Janeiro (RJ) em 1973, a banda Azymuth comemorou no ano passado 50 anos de carreira, uma discografia com mais de 30 álbuns e inúmeros shows.
Mas boa parte da trajetória do grupo carioca — inclusive sua retomada após um tempo parada — foi construída não em solo brasileiro, mas a milhares de quilômetros de distância do país.
A banda grava e lança seus discos novos por uma gravadora inglesa, a Far Out. Depois, alguns discos acabam sendo lançados em parcerias no Brasil, mas nem todos.
Não é exagero dizer que, de cada dez artistas do catálogo da Far Out, nove são brasileiros e o outro, possivelmente, tem alguma relação com a brasilidade.
Apesar de não lançar exclusivamente música brasileira, esta é a principal especialidade da gravadora baseada em Londres.
Mas a Far Out não é um caso isolado: há “rotas” que conectam artistas brasileiros a gravadoras sediadas no exterior passando também por outras partes da Europa e pelos Estados Unidos.
Esse intercâmbio é explicado por fatores como a admiração pela música brasileira no exterior; a maior abertura em outras partes do mundo a alguns nichos, como a música instrumental; e até as dificuldades de fabricação de discos de vinil em território nacional, que fazem alguns músicos brasileiros procurarem parceiros internacionais para lançar seus trabalhos.
‘Segundo escalão’ no Brasil e ‘primeiro escalão’ na Europa
A história da Far Out começou no encontro com o Azymuth.
O DJ inglês Joe Davis estava recuperando o som que havia feito sucesso nas paradas britânicas no fim dos anos 1970, Jazz Carnival. Despretensiosa, a faixa era um improviso de quase dez minutos produzido em estúdio.
Na época da gravação o Azymuth já tinha uma carreira importante na Europa. Em 1977, havia sido o primeiro grupo brasileiro a se apresentar no festival de Jazz de Montreux, na Suíça. Nos anos 1990, o Jamiroquai chegou a fazer um cover desta música.
A banda estava parada quando foi procurada por Davis. O baixista Alex Malheiros, o baterista Ivan Mamão Conti e o tecladista José Roberto Bertrami continuavam suas carreiras de músicos com gravações e shows com diversos artistas brasileiros, mas os projetos da banda estavam parados desde o fim do contrato com a gravadora norte-americana Fantasy, que lançou seus discos no exterior entre o fim dos anos 1970 e o começo dos anos 1990.
Davis, que declara ter uma “paixão insaciável pela música brasileira”, fundou então a Far Out em 1994. Ele viaja frequentemente ao Brasil para garimpar fonogramas de discos raros e artistas.
A gravadora relançou discos dos anos 1970 e 1980 do Azymuth, além de ser a gravadora de diversos trabalhos recentes do grupo e de vender bonés, camisetas e xícaras com símbolos da banda.
Conti e Bertrami faleceram, mas o Azymuth segue em atividade atualmente, com Kiko Continentino nos teclados e Renato Massa na bateria.
Mas muito além do Azymuth, a gravadora se tornou uma importante divulgadora da música brasileira no exterior, com o relançamento de discos raros, novos trabalhos de artistas consagrados nas décadas anteriores e outros mais jovens.
A lista de artistas com discos lançados por eles inclui Hermeto Pascoal, João Donato, Eumir Deodato, Marcos Valle, Arthur Verocai, Antonio Adolfo, Naná Vasconcelos e Som Imaginário e vai até Amaro Freitas, Bruno Berle, Antônio Neves e Nômade Orquestra.
Outro grupo impulsionado pela gravadora inglesa é o Black Rio, que após estourar nos anos 1970, entrou em uma nova fase nos anos 2000.
Foi o tecladista William Magalhães — filho do saxofonista Oberdan, o líder da formação original da banda — quem retomou o grupo. A banda original permaneceu até 1984, quando Oberdan morreu.
A Far Out lançou o álbum Super Nova Samba Funk em 2011, o segundo gravado na fase atual da Black Rio.
A exposição internacional ajuda na venda de shows e em outros negócios com as gravações.
“A gente chega em alguns festivais na Europa e é tratado como estrela, enquanto no Brasil não somos vistos nem como segundo escalão”, diz William Magalhães.
“Vendemos até o direito de uso de uma música para um game japonês que depois fez sucesso também nos Estados Unidos”, comenta o tecladista.
No caso do Black Rio, a diferença também pode ser explicada pela pouca atenção que a música instrumental recebe no Brasil, mesmo com repertórios de música popular.
Desde a sua origem, porém, o Black Rio faz sucesso no exterior.
O álbum Maria Fumaça, cuja música homônima virou tema de novela da TV Globo, foi na época lançado na Europa e, hoje, os vinis produzidos na Alemanha e em Portugal valem entre R$ 400 e R$ 1 mil, segundo o Discogs, plataforma internacional do mercado de discos.
O terceiro disco do grupo, Saci Pererê, foi lançado na Alemanha e no Japão.
Mesmo sendo mais especializada em música brasileira, a Far Out não está sozinha neste mercado nem mesmo na Inglaterra. A Mr. Bongo, de Brighton, relança ou distribui diversos músicos brasileiros.
A gravadora começou como uma loja de discos e filmes no fim dos anos 1980, com foco em música africana, latina e brasileira. O dono, David Buttle, assim como Davis, trabalhou como DJ.
Tim Maia, Sandra de Sá, Antônio Carlos e Jocafi, Sebastião Tapajós, Tom Jobim, Astrud Gilberto, Caetano Veloso, Novos Baianos, Carlos Dafé, César Mariano, Gal Costa, Edu Lobo, Dom Um Romão e Dom Salvador e Banda Abolição são alguns dos nomes que tiveram relançamentos, inclusive de discos considerados raros no Brasil e no exterior.
A gravadora também distribui discos contemporâneos como das cantoras Ana Frango Elétrico e Bebel Gilberto e da Espetacular Charanga do França.
Na costa leste dos Estados Unidos, em Los Angeles, a gravadora Jazz Is Dead também tem lançado trabalhos importantes de músicos brasileiros — ainda que com uma proposta completamente diferente.
A gravadora e promotora de shows, criada pelo DJ estadunidense Ali Shaheed Muhammad, organiza jam sessions (reunião de músicos de diferentes grupos para improvisações musicais) em estúdios e apresentações ao vivo.
Azymuth, João Donato, Arthur Verocai, Hermeto Pascoal, Airto Moreira, Milton Nascimento, Mutantes, Joyce e Tutty Moreno e Emicida são alguns dos artistas que fizeram shows organizados por ela.
A Jazz Is Dead também organizou shows no Rio e em São Paulo, onde fez, em setembro do ano passado, um seminário e shows. Em abril, será a vez do trio paulistano O Terno tocar na Califórnia, em show promovido pela empresa.
Responsável pela Festa Selvagem, tradicional em São Paulo, o DJ brasileiro Augusto Olivani, conhecido como Trepanado, atualmente vive em Lion, na França. Lá, ele criou a Selva Discos, que lançou em setembro do ano passado o disco Déjà Vu, com músicas inéditas da dupla Lincoln Olivetti e Robson Jorge.
A dupla de músicos e arranjadores tinha apenas um disco lançado juntos, com composições próprias. Mas eles fizeram mais sucesso como arranjadores, principalmente no início dos anos 1980, quando gravaram com Tim Maia, Gal Costa, Marcos Valle, Gilberto Gil, Jorge Benjor e outros grandes nomes da música brasileira.
Para Augusto, a música brasileira tem um mercado grande na Europa, Estados Unidos e Japão, o qual tem se expandido nos últimos anos.
“Ainda existem muitos relançamentos que são feitos na cara de pau mesmo, sem o consentimento dos artistas. Mas existem alguns trabalhos mais sérios sendo feitos”, diz.
Os relançamentos na “cara de pau” são discos lançados no exterior de forma pirata, sem o consentimento da família ou de herdeiros e, portanto, sem pagar pelo uso.
Em casos assim, o empresário conta que os donos dos direitos nem ficarão sabendo ou terão dificuldades de acessar a Justiça no país em que foi feita a prensagem ilegal.
Um exemplo recente foi um relançamento japonês de um álbum duplo com os discos Tim Maia Racional, gravados no meio dos anos 1970 e considerados um clássico do soul brasileiro. Os discos originais eram tidos como raridade durante muitos anos no mercado nacional e estrangeiro.
Vinis
Para Augusto Olivani, os lançamentos em vinil estão expandindo o mercado de nichos — não só de música brasileira, mas de outras especialidades como música cubana, caribenha e africana, por exemplo.
O interesse dos estrangeiros em lançar música brasileira coincide também com a dificuldade de produção de discos de vinil no país.
Hoje, o Brasil tem apenas três fábricas de vinil. Se uma gravadora grande resolve fazer um lançamento no formato, acaba travando a produção para as pequenas durante meses — algo inacessível para um selo boutique, como ele define a Selva Discos.
Por isso, o mercado brasileiro muitas vezes acaba sendo abastecido por prensagens internacionais.
A estratégia de fabricar os discos fora do Brasil é usada pela Scubidu Music, de São Paulo.
A empresa tem entre seus lançamentos discos de Hermeto Pascoal, Anelis Assumpção e Serena Assumpção, além de organizar as turnês internacionais de Hermeto e turnês de artistas estrangeiros, notadamente de afrojazz, no Brasil.
Flávio de Abreu, da Scubidu, também atribui a escolha aos gargalos na fabricação nacional de discos de vinil. O problema tende a se agravar, segundo ele, pelo aumento do consumo deste tipo de produto.
“É a única mídia física que o consumo cresce no mercado internacional nos últimos anos”, diz.
Exceto pelo vinil, o crescimento atualmente está nas mídias digitais.
Para Abreu, apesar de ser importante para a divulgação de trabalhos históricos da música brasileira, os selos internacionais tendem a criar fantasias em relação a determinados registros.
“Muitas vezes, existem gravações com melhor qualidade, mas eles querem aquele show histórico em um local específico, algo que valorize a raridade daquele produto”, comenta.
Histórias muitas vezes imprecisas alimentam a mitologia em torno daquele original. A meta é alcançar os colecionadores, mais do que os ouvintes de boa música.
“É uma contradição, porque, na medida que eles relançam, aquele disco deixa de ser uma raridade”, diz.