A correria era grande nos hotéis Le Bistrol e Mandarin Oriental, em Paris, no dia 11 de outubro. A JBS, maior produtora de carne do planeta, havia feito uma demanda à organização do Fórum Esfera Internacional Paris: os cerca de 20 executivos da empresa —patrocinadora do evento— deveriam ficar no mesmo hotel.
Isso exigiu mudanças de última hora e remanejamento de autoridades que também ocupariam os dois locais, em que as diárias mais baratas variam de 1.200 euros a 1.700 euros (R$ 6.250 a R$ 8.800).
A Esfera Brasil, organizadora do evento, confirma o pedido, mas não que ele tenha partido dos irmãos Joesley e Wesley Batista, donos da J&F, holding acionista majoritária da JBS. Teria sido um erro cometido por um funcionário da empresa de carnes.
O fórum teve a presença do presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), Aloizio Mercadante, da secretária-executiva da Casa Civil, Miriam Belchior, do presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Luís Roberto Barroso, do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e do ex-presidente da França Nicolas Sarkozy.
Para convidados que estiveram presentes e conversaram com a Folha, foi o maior evento realizado pela Esfera e o de maior repercussão.
Nem todos ficaram contentes. O ex-governador de São Paulo João Doria irritou-se ao ver imagens no evento de pessoas que costumam contribuir com o seu próprio empreendimento, o Lide (Grupo de Líderes Empresariais). Um deles diz ter sido questionado com uma frase na linha “de que lado você está?”
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O relato indica um novo cenário. Durante quase duas décadas, o Lide nadou de braçada na realização de fóruns, debates e eventos públicos em que, mediante pagamento de associação e contribuição com patrocínios, empresários poderiam se aproximar de autoridades.
A Esfera passou a ocupar este espaço a partir de 2021 se aproveitando de um vácuo no mercado.
Doria tentou fazer algo considerado muito difícil: conciliar a vida de prefeito de São Paulo (2017-2018) e governador do estado (2019-2022) com o comando de uma instituição que, teoricamente, não tem inclinação política.
Pelo caminho, queimou pontes com Luiz Inácio Lula da Silva —hoje presidente—, o petismo, e se tornou um dos maiores adversários do bolsonarismo durante a pandemia da Covid-19.
João Camargo, criador da Esfera, não se cansa de alardear o apartidarismo de sua organização, que seria um fórum de debates e eventos para melhorar o Brasil.
O grupo gosta de usar, para se descrever, a expressão think tank —termo em inglês para instituições que produzem conhecimento sobre temas políticos, econômicos ou científicos, não apenas reúnem pessoas para debates.
Os promotores brasileiros desses encontros rejeitam o termo lobby, que na origem significa a pressão legítima de grupos de interesse sobre políticos e poderes públicos para influenciá-los com seus argumentos, mas ganhou conotação negativa no país.
Para empresários ouvidos pela reportagem, pode não ser lobismo de maneira oficial, mas serve como tal. Um deles afirmou que Lide e Esfera são clubes de relacionamento, uma espécie de networking pago.
Por dois meses, a Folha ouviu envolvidos nas duas organizações. As informações publicadas foram checadas com ao menos duas fontes. Integrantes da Esfera conversaram sob condição de anonimato.
A assessoria do Lide afirmou que nem Doria nem ninguém do Lide comentaria sobre “informações off” (“off the records”, ou “sem gravação”, jargão jornalístico usado quando a informação não é atribuída à fonte).
A Esfera diz não ter nenhuma intenção de facilitar o acesso de empresários a autoridades, mas, sim, discutir propostas e ideias. A proximidade entre uns e outros, afirmam seus integrantes, é decorrência inevitável de estarem todos no mesmo recinto.
A Esfera diz que os lugares em seus fóruns são livres, cada um senta onde quiser. Mas, em Paris, nem todos conseguiram ter acesso ao presidente do STF, Luís Roberto Barroso, segundo relatos feitos à reportagem.
Camargo costuma dizer que o estatuto, redigido pelo advogado criminalista Pierpaolo Bottini, é “à prova de bala”: o documento proíbe ligação partidária aos participantes da Esfera.
Pelo compliance da entidade, podem existir no máximo 50 associados. Atualmente, há 47, que pagam mensalidades por boleto. O valor, não confirmado pela Esfera, seria de R$ 50 mil por ano.
O privilégio de ser associado é ser chamado para participar de debates e ter acesso às autoridades. Quando são feitos simpósios, a instituição sai em busca de dinheiro entre seus sócios, que se tornam também patrocinadores.
A Esfera nega que patrocinar ofereça vantagens, nem mesmo melhores posições em mesas próximas a autoridades.
O Lide não disse como funciona seu modelo de associação, a não ser o comparecimento a eventos. Um empresário enviou para a Folha o valor do pagamento da anuidade feito ao Lide: R$ 18.800. Empresários disseram que é natural pagar valores a mais por vantagens como se sentar à mesa com convidados.
Além do preço das anualidades, outra diferença entre os grupos é o número de empresas associadas. Em 10 de julho, o Lide comemorou seus 20 anos e publicou ser a “maior associação de empresários do Brasil, com 1.800 empresas e mais de 4.000 filiados no Brasil e no exterior”.
Mas, mesmo menor, a Esfera cresceu por prosperar no terreno político e poder contar com a participação de integrantes do governo Lula em seus eventos. O Lide não pode trazer ministros ou presidentes de estatais para seus debates por causa de veto informal do presidente da República, que detesta o ex-governador de São Paulo.
Segundo relatos de empresário e de um político ligado a Lula, ele caiu na gargalhada ao ouvir que João Camargo havia “ferrado” Doria com a Esfera.
Ciente do problema, o ex-governador tem pedido a ajuda de interlocutores para se aproximar de Lula. No mês passado, disse que o atual mandatário poderia ser o agente pacificador do Brasil e o comparou ao ex-presidente sul-africano Nelson Mandela.
Para contornar provisoriamente a resistência do presidente petista, tem apostado em levar governadores e integrantes do Legislativo, onde tem influência, para os eventos que organiza.
Doria não tem nenhum pudor em mostrar que o Lide foi criado à sua imagem e semelhança. Quando anunciou a candidatura a prefeito de São Paulo, em 2016, deu a notícia primeiramente a alguns associados de sua entidade. Metódico, gosta de cuidar pessoalmente de todos os aspectos dos eventos, da qualidade da comida que será servida à decoração do local do debate.
De outro lado, João Camargo —adolescente que sempre adorou política e tinha Orestes Quércia (governador de São Paulo entre 1987 e 1990) como ídolo— quer projetar a imagem de que o importante é a entidade, não ele. Diz que não deseja ser visto como a maior marca da Esfera.
Mas, nos bastidores, é exatamente isso o que acontece. Seja pela sua capacidade de navegar entre diferentes grupos políticos, seja pela inveja que deputados, senadores e ministros têm de seu conhecimento sobre vinho.
Camargo faz parte de diferentes confrarias sobre o assunto, e a ideia de criar o grupo Esfera nasceu em reuniões virtuais regadas a essa bebida, durante a pandemia da Covid-19.
Ele gosta sempre de contar que em alguns círculos petistas é visto como bolsonarista e, quando ia visitar o ministro das Comunicações de Jair Bolsonaro, Fábio Faria, era chamado de lulista.
Durante a campanha presidencial, no ano passado, a Esfera era frequentada por partidários de Bolsonaro. Em abril de 2022, Camargo promoveu um jantar do então candidato à reeleição com empresários. Mas sempre manteve pontes com Lula e compareceu com apoiadores do petista a pelo menos um debate entre os candidatos.
Setores do PT também veem Camargo com desconfiança, em parte, pela sociedade na CNN Brasil, que estaria muito à direita no espectro político, na opinião deles. As críticas de ambos os lados servem ao criador da Esfera, que as usa como exemplo do suposto apartidarismo que apregoa exercer.
Lide e Esfera apostam em eventos no exterior
As duas entidades tentam fincar o pé no exterior com eventos em que autoridades nacionais e estrangeiras são atrações principais. Foi essa estratégia que levou ao evento de maior sucesso da Esfera, ocorrido em Paris em outubro.
O Lide mira Dubai, nos Emirados Árabes. A Esfera quer ir à Arábia Saudita em 2024 e planeja, se conseguir participação da ONU e vencedores do Nobel de economia, fazer um simpósio em Genebra, na Suíça.
O discurso das duas entidades é de debater o Brasil, mas empresários enxergam fóruns no estrangeiro como um ovo de Colombo. Não apenas podem ter contato com políticos, ministros ou outras personalidades durante congressos específicos. Podem ficar nos mesmos hotéis que eles.
Os “dois Joãos” têm outras semelhanças. Por caminhos diferentes, fizeram parte de administrações públicas.
Camargo foi secretário de Governo do prefeito Jânio Quadros (1917-1992), entre 1986 e 1989. Também ocupou cargo de assessor da ex-ministra da Economia Zélia Cardoso de Mello, de 1990 a 1991, quando o presidente era Fernando Collor de Mello. Foi quando, afirma, decidiu se afastar da política. Pelo menos até a criação da Esfera Brasil.
Doria se tornou secretário municipal de Turismo em São Paulo na gestão de Mário Covas (1930-2001), entre 1983 e 1986. Em seguida foi nomeado presidente da Embratur até 1988 durante o governo José Sarney.
Ambos também são filhos de políticos e têm história na comunicação, em funções distintas. Além de ser sócio da CNN Brasil, Camargo, administrador formado pela PUC-SP, possui participações ou é dono das rádios Nativa FM, BandNews, 89 FM, Alpha e Disney.
Formado em comunicação social, Doria foi editor de revistas e apresentador de programas de TV. O de maior sucesso foram duas temporadas do reality show O Aprendiz.
No espaço aberto por Esfera e Lide, outros procuram hoje promover discussões sobre políticas e intermediar contatos com autoridades.
Um grupo de WhatsApp chamado “mercado e opinião”, com 700 empresários, reúne boa parte do PIB brasileiro. Uma vez por mês, é organizado um jantar e um palestrante é convidado.
Há outro chamado “Brasil que dá certo”, também com empresários e nomes do mercado financeiro.